"Mudar é difícil mas é possível". - Paulo Freire

O POVO AO REDOR DE JESUS


O POVO AO REDOR DE JESUS

 "Todos se reunindo para ouvi-lo"


A MAIOR PARTE das interpretações dessa parábola se concentra na súplica e no retorno do filho mais novo — o “Filho pródigo”. No entanto, tais interpretações negligenciam a verdadeira mensagem da história, uma vez que há dois filhos, cada um representando uma maneira de permanecer alienado de Deus, e cada um representando diferentes modos de se buscar a aceitação no Reino dos Céus.

É de extrema importância notar a ambientação histórica que o autor provê para o ensinamento de Jesus. Nos primeiros dois versículos do capítulo, Lucas ressalta que havia dois grupos de pessoas que se reuniam para ouvir Jesus. Primeiro, havia os “publicanos e pecadores” . Esses homens e mulheres correspondem à figura do irmão mais novo.Tais pessoas não observavam nem as leis morais da Bíblia nem as regras da pureza cerimonial seguidas pelos judeus religiosos; seguiam “vivendo irresponsavelmente”.

Como o irmão mais novo, “saíram de casa” ao abandonar a moralidade tradicional de suas famílias e da sociedade respeitável. O segundo grupo de ouvintes consistia dos “fariseus e os mestres da lei”, que eram representados pelo irmão mais velho. Tal grupo se prendia à moralidade tradicional de sua criação. Eles estudavam e obedeciam às Escrituras. Também adoravam com muita fé e oravam com frequência. 

Com grande economia de palavras, Lucas nos mostra quanto as reações dos dois grupos a Jesus diferiam entre si. O aspecto progressivo do verbo grego traduzido como “se reunindo” implica que a atração dos irmãos mais novos por Jesus era um padrão recorrente em seu ministério. Essas pessoas se reuniam com frequência ao seu redor. Tal fenômeno intrigava e irritava os defensores da moral e da religião da época. Lucas sintetiza a reclamação deles: “Este homem recebe pecadores e [até mesmo] come com eles.” No Antigo Oriente Próximo, sentar-se e comer com uma pessoa
era uma mostra de aceitação. “Como Jesus ousa estender a mão para os pecadores assim?”, diziam.
“Essas pessoas nunca frequentam nossos serviços! Porque seriam atraídas pelos ensinamentos de Jesus? Ele jamais poderia proclamar a eles a verdade do mesmo modo com que o fazemos. Ele deve estar dizendo a eles apenas o que querem escutar!”

Para quem é dirigido o ensinamento de Jesus nessa parábola? Para o segundo grupo, formado por
escribas e fariseus.Jesus começa a contá-la em resposta à atitude dos irmãos mais velhos. A parábola dos dois filhos realiza uma análise aprofundada da alma do irmão mais velho, culminando com um pedido para que ele mude seu coração. 

Ao longo dos séculos, quando esse texto é ensinado na igreja ou em programas de ensino religioso, a ênfase recai quase sempre em como o Pai generosamente recebe o filho mais novo penitente. Na primeira vez em que ouvi essa parábola, imaginei os olhos dos seguidores originais de Jesus transbordando de lágrimas conforme ouviam sobre como Deus sempre os amaria e os receberia, sem se preocupar com as ações passadas. Mas estaremos cedendo ao sentimentalismo se assim procedermos com a parábola. Os alvos dessa história não são os “pecadores renitentes”, mas as pessoas religiosas que fazem de tudo para obedecer à Bíblia. Jesus suplica não apenas aos intrusos imorais, mas também aos membros moralistas. Ele deseja revelar a essas pessoas a própria
cegueira, mesquinhez e todo o farisaísmo, e como essas características estavam destruindo tanto suas almas quanto a vida das pessoas ao seu redor. E um erro, portanto, pensar que Jesus conta essa história com o objetivo primeiro de garantir aos irmãos mais novos seu amor incondicional.

Não, os ouvintes inaugurais não se derramaram em lágrimas ao ouvir a história, mas se sentiram,
antes, atingidos em cheio, ofendidos e enfurecidos. O propósito de Jesus consistia não em aquecer os cora­ções, mas em desfazer a divisão existente. Com essa parábola, Jesus desafia aquilo que quase todos sempre pensaram a respeito de Deus, do pecado e da salvação. A história revela a teimosia autodestrutiva do irmão mais novo, mas também condena veementemente o estilo de vida do irmão mais velho. Jesus está dizendo que tanto o religioso quanto o descrente estão espiritualmente
perdidos, que ambos os estilos de vida são um beco sem saída e que todo e qualquer pensamento
que a raça humana teve em relação a como se ligar a Deus, até então, fora mero engano.

Por que as pessoas gostam de Jesus mas não da Igreja?

Tanto o irmão mais velho quanto o mais novo estão hoje entre nós, na mesma sociedade em que vivemos e, muitas vezes, em nossas próprias famílias.

Muito acontece de o filho mais velho de uma família ser o que mais agrada aos pais, de ser o responsável, o que obedece e reforça os costumes dos pais. Os filhos mais novos tendem a ser mais rebeldes, espíritos livres que preferem a companhia e a admiração de seus pares. O primogênito cresce, arranja um trabalho convencional e cria raízes perto da Mamãe e do Papai, enquanto o irmão mais novo prefere vivernos bairros tumultuados e mais badalados.

Essas diferenças naturais e emocionais foram acentuadas em tempos mais recentes. No começo do
século XIX, a industrialização fez surgir uma nova classe média — a burguesia — que buscava atingir a legitimidade por meio de uma ética que consistia em trabalho árduo e retidão moral. Em resposta à hipocrisia e à rigidez notáveis da burguesia surgiram várias comunidades de boêmios, podendo-se citar desde a Paris de Henri Murger, em 1840, passando pelo Grupo de Bloomsbury londrino e pela geração Beat, surgida em GreenwichVillage, até o cenário indie rock
dos dias atuais. Os boêmios enfatizam o desapego às convenções e a autonomia pessoal.

Em certa medida, as assim chamadas “guerras culturais” encenam esses mesmos impulsos e comportamentos conflitantes na sociedade moderna. Cada vez mais as pessoas se consideram irreligiosas ou mesmo contra as religiões. Tais pessoas acreditam que as questões morais são altamente complexas e, por isso, suspeitam de qualquer indivíduo ou de qualquer instituição
que alegue ter autoridade moral sobre a vida de terceiros. Apesar (ou, talvez, como causa) do surgimento desse espírito secular, também tem havido um aumento nas fileiras dos movimentos religiosos conservadores e ortodoxos. Alertados pelo que percebem como um massacre do relativismo moral, muitos se organizam para “resgatar a cultura”, assumindo uma
postura negativa em relação aos irmãos mais novos, assim como fizeram os fariseus.

Mas de que lado está Jesus? Na trilogia O senhor dos anéis, quando os hobbits perguntam ao ancião
Barbárvore de que lado ele está, ouvem esta resposta:

“Não estou totalmente do lado de ninguém, porque ninguém está totalmente do meu lado (...) E há algumas coisas, é claro, de cujo lado eu absolutamente não estou.” A resposta que Jesus dá para essa mesma pergunta por meio da parábola é bastante similar. Ele não se coloca ao lado nem do irreligioso nem do religioso; em vez disso, aponta que o moralismo religioso é uma condição de morte espiritual.

E difícil perceber isso hoje, mas quando o Cristianismo surgiu no mundo, não era considerado
religião. Era uma não religião. Imagine os vizinhos dos primeiros cristãos questionando-os em relação a sua fé: “Onde está seu templo?”, eles perguntariam, ao que os cristãos responderiam afirmando não terem templos. “Como isso é possível? Onde trabalham seus sacerdotes?” Responderiam os cristãos que não os tinham. “Mas... mas...”, engasgariam os vizinhos,
“Onde são feitos os sacrifícios para agradar aos seus deuses?”, ao que ouviriam dos cristãos que não mais faziam sacrifícios. Jesus em pessoa era o templo que colocaria fim a todos os templos, o sacerdote que findaria todos os sacerdotes, e o sacrifício que substituiria todos os sacrifícios.

Ninguém jamais ouvira algo semelhante. Assim, os romanos os chamaram “ateus”, uma vez que
o discurso dos cristãos sobre a realidade espiritual era único e não podia ser classificado segundo qualquer outra religião do mundo. A parábola em questão explica por que os romanos estavam absolutamente corretos ao chamá-los ateus.

A ironia de tudo isso não deve ser desvalorizada por nós, enquanto travamos as modernas guerras
de culturas. Para a maior parte das pessoas de nossa sociedade, o Cristianismo é religião e moralismo. A única alternativa a ele (além de outras religiões) é o secularismo plural. Mas no início não era assim. O Cristianismo era considerado um "tertium quid", algo completamente diferente.

O ponto central aqui é que, de modo geral, as pessoas que observavam a religião se sentiram ofendidas por Jesus, mas as pessoas alheias à observação moral e religiosa se sentiram intrigadas e atraídas por ele. Vemos o mesmo acontecer nos relatos sobre a vida de Jesus contidos no Novo Testamento. Em todos os exemplos em que Jesus se depara com uma pessoa religiosa e uma rejeitada por motivo sexual (como em Lucas 7), ou por motivo racial (como em João3-4), ou por motivo político (como em Lucas 19), é sempre a pessoa rejeitada que se identifica com Jesus, como não acontece com o tipo que caracteriza o irmão mais velho. Diz Jesus aos respeitáveis líderes
religiosos: “ Os publicanos e as prostitutas estão entrando antes de vocês no Reino de Deus” (Mateus 21:31).

Com frequência, os ensinamentos de Jesus atraíam as pessoas não religiosas enquanto ofendiam
as pessoas que criam na Bíblia, os religiosos da época. No entanto, no geral, nossas igrejas de hoje não causam o mesmo efeito. Os tipos de excluídos que Jesus atraía não são atraídos pelas igrejas contemporâneas, mesmo as mais progressistas.Tendemos a atrair pessoas conservadoras, convencionais e moralistas. Os liberais e libertinos, ou os marginais e humilhados, evitam as igrejas.Tal fenômeno só pode ter um significado: se a pregação de nossos ministros e o serviço de nossos paroquianos não têm o mesmo efeito sobre as pessoas que Jesus tinha, então provavelmente não estamos proclamando a mesma mensagem de Jesus. Se nossas igrejas não causam apelo algum aos irmãos mais novos, provavelmente devem estar mais repletas de irmãos mais velhos do que gostaríamos.

(Trecho do Livro: O Deus Pródigo - Autor: Timothy Keller)

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